Apontamentos para uma história do sistema penitenciário paranaense
Texto elaborado e gentilmente cedido pelo professor Clóvis Mendes Gruner.
Clóvis Mendes Gruner
É professor adjunto do Departamento e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná (DEHIS/PGHIS/UFPR), mestre e doutor em História pela mesma instituição. Publicou Leituras matutinas: utopias e heterotopias da modernidade na imprensa joinvilense (1951-1980) (Curitiba, Aos Quatro Ventos, 2003), e é co-organizador de Nas tramas da ficção: História, literatura e leitura (São Paulo, Ateliê Editorial, 2008), além de artigos em periódicos acadêmicos. É membro pesquisador do grupo de pesquisa NAVIS Núcleo de Artes Visuais, na linha de pesquisa História e ficção . Áreas de interesse: teoria da história e historiografia; história e violência; criminalidade; instituições penais; história e novas linguagens (cinema, literatura e história em quadrinhos).
A inserção de Curitiba no chamado projeto burguês de sociedade remonta a meados do século XVIII e atravessa o XIX. Essa mudança é, inicialmente, parte de uma ação mais ampla de controle da metrópole, Portugal, sobre a Colônia, suas províncias e vilas, que se inicia e consolida ao longo do setecentos e se estende até a independência. Mas é o advento da república que imprime de forma definitiva um ritmo acelerado de mudanças e inovações, e não apenas no caráter urbanístico das cidades. A capital do ainda jovem estado do Paraná, certamente, não é exceção e, desde fins do século XIX e ao longo dos primeiros anos do século seguinte, passa por uma série de intervenções que visam, fundamentalmente, melhorar seu traçado urbano, emprestando-lhe um ar mais moderno e “civilizado”.
Penitenciária do Estado - 1909 (Presídio do Ahú)
Mas se a modernidade trouxe o progresso e a civilização, ela engendrou também o seu avesso: a violência e o crime. Algumas ações no sentido de assegurar a ordem e a segurança públicas começam, então, a ser tomadas. Em março de 1903 a cidade vê inaugurar o Hospício de Nossa Senhora da Luz, no Ahu. Dois anos depois, em abril de 1905, começa a funcionar o Gabinete Antropométrico, que utiliza como método de identificação o sistema de Bertillon. Contemporâneos destes investimentos, como a demonstrar uma ação orquestrada por parte do estado com o intuito de modernizar e fortalecer o aparato de segurança, são a implantação ou revisão dos regimentos e regulamentos das prisões, da Estatística Policial e Judiciária, da Repartição Central de Policia, do Regimento de Segurança e a Consolidação das leis policiais.
Nenhuma destas ações, no entanto, tocava em um problema central, para cuja solução reclamavam-se medidas urgentes. Malgrado os esforços para a construção de uma penitenciária estadual nos derradeiros anos do império, o que se reivindicava naquele momento era uma prisão que não apenas comportasse o número de criminosos que, vindos de todo o estado, habitavam as celas fétidas das cadeias locais, mas que contribuísse efetivamente para sua recuperação. Em outras palavras, uma instituição moderna e coerente com os modelos e preceitos científicos que regiam a chamada “ciência penitenciária”.
O anúncio de que medidas mais efetivas seriam tomadas para a solução do problema foi feito em fevereiro de 1905, em mensagem enviada pelo presidente do Estado, Vicente Machado, aos deputados na abertura dos trabalhos legislativos daquele ano. A iniciativa de Vicente Machado traduz-se em um acordo, firmado em abril do mesmo ano, entre o estado e a Santa Casa de Misericórdia, que previa a cessão, por parte da segunda, do prédio do asilo para a instalação da Penitenciária do Estado. Em troca, o governo estadual auxiliaria a Santa Casa na construção de uma nova sede para abrigar o hospício. O modelo a ser adotado seria definido de acordo com as necessidades e conveniências do “meio”.
A lei que autorizava a constituição da Penitenciária do Estado e instituía o seu regulamento, é sancionada em 1908. Em janeiro de 1909, com a remoção dos primeiros presos da cadeia civil, a Penitenciária do Ahu finalmente entre em funcionamento, tendo sido nomeado seu primeiro diretor o major Ascanio Ferreira de Abreu. O modelo adotado foi o de Auburn, que preconizava a regeneração do criminoso por meio do trabalho diurno fora das celas, executado de forma contínua e silenciosa e, durante a noite, isolamento total até o alvorecer do novo dia. No balanço que faz dos primeiros meses de funcionamento da Penitenciária do Ahu, o major Ascânio Ferreira de Abreu, dedica em seu relatório uma especial atenção ao progresso físico dos sentenciados: “Os penitenciados, em geral”, afirma,
estão robustos, e com o regimen de trabalho a que estão sujeitos, de rachiticos que eram, doentios pela completa ociosidade em que viviam e pela falta dos mais comesinhos preceitos de hygiene, tiveram as forças restauradas, apresentando-se com um aspecto sadio e com aproveitável desenvolvimento muscular. (...) O trabalho bem distribuído e a instrucção bem ministrada, eis a meu ver, os vehiculos que com mais segurança e rapidez percorrem a grande estrada do reerguimento physico e moral dos delinqüentes.
Nos anos imediatamente subseqüentes, entre queixas mais ou menos pontuais e reivindicações por melhorias, especialmente no que tange à ampliação de seu espaço físico, a apreciação da penitenciária mantém, em linhas gerais, o caráter positivo. A ênfase recai sobre as condições de salubridade oferecidas pela instituição, desde sua localização geográfica, passando pelas instalações internas, consideradas adequadas, sob a perspectiva dos administradores públicos, para efetiva recuperação dos detentos. Alguns anos depois, mesmo diante da lotação excessiva – 114 presos para 52 celas – a comprometer, não apenas a ordem interna da penitenciária, mas o próprio princípio doutrinário adotado quando da sua instalação – o de Auburn – o relatório do diretor reafirma que “a disciplina continua a ser mantida sem discrepancia n’este estabelecimento”, resultado de um trabalho educativo constante e incansável que forjou sentenciados “dóceis [que] se compenetram da necessidade que têem de evitar castigos, submettendo-se à disciplina”.
Nos anos seguintes, no entanto, o teor do discurso muda e o tom prosaico destes primeiros relatórios cede lugar a um conteúdo em que são ressaltados, mais e mais, os muitos problemas, já nem tão pontuais. Eles vão da crescente lotação às condições insalubres do terreno e do prédio, passando pela segurança precária, a carência de vagas nas oficinas e um crescente ambiente de hostilidade e violências cotidianas verificados entre os presos e entre estes e seus carcereiros. Seja pelas dificuldades financeiras ou por simples vontade política, em um curto espaço de tempo a situação se deteriora e, pouco a pouco, torna-se cada vez mais difícil manter em vigor o projeto original: antes de seu 10o aniversário, em 1917, já são 122 sentenciados – mais de dois para cada cubículo. Em 1925 começam as obras de ampliação, com a construção de 92 novas celas, concluídas apenas em 1928. A degradação das condições de funcionamento da Penitenciária do Ahu culmina com a primeira rebelião, ocorrida em 17 de maio de 1931, com três guardas e dois sentenciados mortos e outros 10 evadidos, a maioria deles capturados nos dias que seguiram a rebelião.
A rebelião e as razões alegadas para justificar sua eclosão, comprometem o projeto pedagógico e civilizador da penitenciária ao expor suas contradições e lançar luz sobre a precariedade de uma instituição tida, até então, como modelo. Nos anos seguintes, entre ampliações e a construção de novos presídios, um outro modelo penitenciário para o Paraná seria gestado. A primeira mudança viria com a construção da Colônia Penal Agrícola e da Penitenciária Central do Estado, localizadas ambas em Piraquara e inauguradas, respectivamente, em 1941 e 1954. No caso da PCE, especificamente, sua aparição coincide com um momento de alterações ainda mais profundas que aquelas do começo o século XX, de que foi testemunha a Penitenciária do Ahu – e a própria localidade em que foi erguida, distante mais de 20 quilômetros da capital, é um indício disso. Mudanças, aliás, que não são exclusivas da sociedade curitibana: nas grandes cidades brasileiras, mas também nas de porte médio, há investimentos públicos significativos no sentido de acelerar ou consolidar um processo de urbanização e industrialização iniciados décadas antes mas que ganham, nos “anos JK” especialmente, impulso decisivo.
A década de 1980 é, sob este aspecto, emblemática para entender a mudança na percepção e nas políticas de combate à violência criminal e de re-organização do sistema penitenciário. Por um lado, nos despedíamos de duas décadas de ditadura militar e seja pela censura ou porque a violência estatal era objeto privilegiado de crítica, oposição e resistência, muitos dos problemas até então tangenciados, como o da violência urbana, ganham relevo no debate público, e não apenas nos corredores governamentais. Se nos voltamos para as prisões, a realidade deste período mostra-se particularmente crítica. Antigos problemas – superlotação, condições físicas precárias, deficiência dos programas de reinserção – permanecem ou mesmo aumentam. A estes, somam-se os novos, que vão desde a ausência de políticas mais consistentes e de longo prazo por parte dos poderes públicos, à atuação do crime organizado, que repercute, entre outros, na eclosão frequente de rebeliões e no significativo aumento de mortes entre os presos, provocadas por rixas entre as diferentes facções.
No Paraná, as últimas décadas foram de um aumento vertiginoso no número de unidades prisionais e de presos. São, hoje, 30 unidades, entre masculinas e femininas de regimes fechados e semi-abertos espalhadas na capital e em diversas cidades do interior. O número de sentenciados praticamente triplicou nos últimos anos, passando de pouco mais de 8 mil em 2005 para cerca de 22 mil presos em 2012. Mudaram também as relações de força dentro das instituições, embora muitos dos problemas percebidos hoje sejam em parte parecidos com aqueles que há décadas assombram os administradores públicos e preocupam aqueles que acompanham as políticas penitenciárias patrocinadas pelos seguidos governos. Se o quadro atual e as perspectivas a curto prazo são preocupantes, talvez eles sirvam como um indicativo da necessidade, fundamental e urgente, de seguirmos pensando e repensando qual o modelo penitenciário que queremos e somos capazes de construir.